Jacinto acordou aquela manhã como sempre, com o espírito inquieto, como
sempre, se sentindo fora do mundo, como sempre, pelo menos, do mundo dos outros
que o rodeavam. Mas eis a surpresa, ao se olhar no espelho, o espanto, o que
virá em sua frente não era a imagem de todo dia. Isso sem mutilação física, sem
mudança de sexo, sem nenhuma intervenção cirúrgica, simplesmente aconteceu.
Por um momento achou que se tratava de uma deformação do espelho, ou uma
imagem refletida através da janela que abrira para deixar o sol entrar. Começou
a observar o focinho que agora trazia em sua face, as grandes orelhas, o pelo
macio... de que raça seria? Para concluir que era um simples vira-lata. Jacinto
acordara aquela manhã transformado num cachorro vira-lata, e sorriu. A
diferença é que continuava um bípede, cujas mãos continuavam com dedos longos
como sempre tivera, mãos de homem, apesar dos pelos acentuados que agora as
revestia. Havia se transformado num cachorro-homem, ou num homem-cachorro.
Depois do choque inicial, que para outro poderia ter sido um Deus nos
acuda, para Jacinto, ao contrário, foi motivo de alegria. Ele sempre amou os
vira-latas, sempre acreditou que era um deles, mas obrigado pelas convenções
sociais, pela repressão familiar, era obrigado a agir como um sujeito qualquer,
porque no íntimo ele sempre sentiu que era outra pessoa, deslocado do mundo que
o rodeava.
Fora a aparência tudo parecia normal com ele, nada indicava em seu
espírito que era diferente do dia anterior. De repente o medo, como seus pais
iriam receber aquela transformação? Seus colegas de trabalho? Fazia 30 anos que
vivia dentro de um corpo que não era o seu, mas todos estavam acostumados com
sua aparência, mesmo que para ele não fosse a real. Certamente perderia a
garota de quem estava se gostando. Era o preço a pagar para ser quem realmente
era. Um preço muito alto. Ficou pensando se valeria a pena. Ou não, quem
sabe, ela iria aceitá-lo numa boa, até ajudá-lo a enfrentar os outros, o
preconceito, a discriminação. Sabia o quanto a humanidade poderia ser cruel com
quem é diferente.
Será que ainda era uma pessoa? Pensou e não se chateou, certamente era a
pessoa diferenciada que sempre quis ser. Ele agora se achava confiante, capaz
de qualquer coisa, porque sentia uma força interior extraordinária.
Vestiu sua melhor roupa, penteou-se, colocou perfume e saiu de casa para
saber o que os outros iriam pensar de seu novo aspecto. Era outro homem..., ou
outro cachorro, apesar de tudo, sua nova imagem refletia finalmente quem ele
era por dentro, quem sempre fora. Isso era o mais importante.
Conhece-te a ti
mesmo! Diz a frase atribuída a Sócrates..., ou a Tales de Mileto, Heráclito ou
Pitágoras, não importa, um dos gregos falou e ela nos conclama desde a Grécia
antiga a sermos nós mesmos, em carne e espírito.
Um homem que é um cachorro só será feliz se puder apresentar para os
outros sua verdadeira face.
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