Aos trinta e seis anos descobri que não
era Shakespeare, nem Molière, nem Brecht. Estava reduzido ao cocô do cavalo do
bandido. Tudo que eu tinha feito não valia nada.
Ninguém queria saber de minhas peças,
nenhum editor queria editar meus livros e acabava de ser demitido do emprego no
banco por falta de decoro público, depois que baixei as calças e mostrei o pau
para uma cliente.
Morava no décimo primeiro andar do
edifício Rajá, em Botafogo, numa quitinete tão apertada quanto as outras.
Cheguei em casa no final da tarde do dia
do meu aniversário passando mal. Uma vontade de vomitar horrível, mas não
conseguia, nem mesmo depois de ter colocado quase que a mão toda na garganta.
Fui à janela e fiquei com vontade de vomitar nos que passavam lá embaixo, mas o
estômago não me ajudou.
Aquela noite sufocante de verão não me
deu sossego. O suor descia-me pelo corpo sem que o ventilador pudesse ajudar.
Não consegui dormir.
Pensei em suicidar-me, mas não tive
coragem, apesar de ter ido várias vezes à janela e me debruçado sobre ela. Se
não doesse seria mais fácil.
No outro dia, cedo, fui ao barbeiro e
mandei raspar a cabeça. Ele vendo minha cabeleira cheia e bem penteada achou
que eu estava brincando. Sim, porque eu fiz questão de pentear os cabelos antes
de mandar raspar. O barbeiro espantado e eu olhando para ele. Sempre fui ali
para pedir um corte da moda, era certo, mas porque ele achava estranho que eu
quisesse raspar? Será que um homem não tem o direito de fazer ao contrário,
tudo que fez de um mesmo modo por anos, sem que se ache estranho?
-
Raspa tudo!
Falei irritado com a indecisão do
barbeiro. Finalmente ele passou a máquina. Senti-me aliviado.
Sorri ao me ver no espelho. Estava
lindo.
Fui para casa, mas fiquei insatisfeito
quando entrei no banheiro, antes do almoço, para o banho, e vi meu corpo ainda
coberto de pelos. Estava em desacordo com meu novo look.
Peguei o barbeador e raspei os pentelhos
que eram os mais salientes, depois passei para o resto do corpo não deixando
fio de cabelo em pé. Fiquei lisinho,
lisinho, apesar de pequenas escoriações deixadas pela lâmina.
Não foi boa ideia raspar os pentelhos.
Ganhei uma coceira alérgica que me esfolou todo o saco. Fiquei sem poder andar
direito.
Na
farmácia me venderam uma pomada que me queimou mais do que a coceira. Fiquei de
não aguentar. Voltei lá e fiz com que me dessem coisa decente. Ameacei baixar
as calças para mostrar o estrago.
Com o novo medicamento na mão resolvi
apelar para coisa natural. Sempre soube que banho de mar era um santo remédio
para inúmeros males.
No meio da tarde do terceiro dia de
minha nova vida, fui à praia em frente. Tirei a roupa inteira e, pelado como
vim ao mundo, passei a pomada e entrei nas águas da enseada de Botafogo.
Peladinho como estava me senti uma
minhoca, melhor, um coliforme fecal. Estava no meu habitat.
Após o banho, deitei-me na areia, não
menos poluída, de pernas abertas para o sol, com o saco esfolado, cheio de
feridas, para secar sob o Trópico de Capricórnio.
Resolvi dar um passeio pela orla. Achei
estranho estar ali todo o tempo, completamente pelado, e ninguém ter se
incomodado. No máximo as pessoas me olhavam, mas quando eu as encarava elas
desviavam o olhar, baixavam a cabeça. Só os mais salientes que passavam nos
ônibus, soltavam piadas, ou davam gritinhos vagabundos. Sequer um policial
apareceu para impedir meu passeio. Ninguém reclamou.
Desse jeito esse povo termina
civilizado. Já não era sem tempo.
Depois do passeio dei uma coçadinha de
leve no saco, porque não podia fazer mais e vesti-me. Voltei aliviado.
Estava me sentindo natural, apesar de
achar que as pessoas me evitavam. Acho que o povo não suporta alguém em estado
tão puro. Eu também era assim antes de saber realmente quem eu era.
Fui a um bar e pedi café com leite, pão
e manteiga. Nem quente, nem frio, como gosto. O pão com pouquíssima manteiga,
por causa do colesterol. O sacana do garçom me serviu um leite pelando de
quente e um pão todo cagado de manteiga.
Pedi para trocar e o descarado não me
deu a menor importância. Disse para eu esperar que o café esfriava. Pedi para
tirar o excesso da manteiga. O cretino me mandou passar uma colher e tirar, que
tinha muita gente para atender, que eu estava atrapalhando o serviço dele.
Não pensei duas vezes. Peguei o leite
quente e joguei na cara do veado. Fiquei esperando uma reação que era pra sair
com ele no braço. Ele ficou parado como uma múmia. Branco como um fantasma.
Todos que estavam à volta também
pararam. Silêncio geral.
Esperei que houvesse alguma reação da
parte de alguém que quisesse tomar as dores do veado, mas ninguém se
manifestou.
O dono veio e mandou o descarado se
limpar. Depois perguntou o que eu queria, com educação, diga-se, e eu disse:
- Leite com pouco café, nem quente, nem
frio, e pão com pouquíssima manteiga.
Assim veio. O dono me serviu
pessoalmente para espanto de todos que nos olhavam boquiabertos. Estavam
aprendendo uma lição, pois não devemos abdicar de nossos direitos.
Comi tranquilamente, agradeci, fui pagar,
mas ele não quis receber. Insisti, mas ele continuou a não querer receber.
Reinsisti. Finalmente recebeu. Mas só paguei o que consumi. Pudera! Eu é que
não iria pagar o que jogara na cara do babaca.
Eu estava de bem com a vida. Nunca me
sentira tão natural. Era eu em estado puro, como Adão deve ter se sentido no
paraíso, antes de comer a maçã da sabedoria e do pecado.
Mas o mundo não está preparado para
alguém em estado tão natural, por isso fizeram as leis, as normas, os códigos,
as posturas, para proibir os desejos e proteger os impostores.
No quarto dia de minha nova vida estava
eu perimpateticamente filosofando, em minha caminhada habitual, quando me
cercaram em pleno calçadão de Botafogo, três policiais militares, cada um maior
que o outro. Com suas naturais cortesias, me fizeram parar. Queriam me envolver
num velho cobertor. Disse logo:
-
Alto lá, em mim ninguém toca.
Eles forçaram o cerco, sabia que estava
em desvantagem, mas não me entreguei. Arranquei o cobertor da mão do cretino e
joguei na rua sobre os carros que passavam. Apareceu um imbecil com uma bermuda
na mão e entregou para um deles. Queriam me ver vestido de qualquer jeito. Não
suportei, dei uma rasteira num soldado, um soco no outro, e investi sobre a
roda de curiosos a minha frente. Abriu-se um clarão e eu corri, mas um covarde
colocou o pé. Caí estatelado no chão. Em cima de mim voaram uns dez filhos da
puta... Foi o fim de minha natureza humana.
Trouxeram-me para cá e me tratam como se
eu fosse um bicho.
(Este
conto integra o livro SUZANA EM COPACABANA, de José Maria Rodrigues Monteiro)
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