Um aperitivo do que poderá acontecer se o porte de arma for
liberado. O conto faz parte de meu livro SUZANA EM COPACABANA.
ENCURRALADO
Josué acordou naquela
segunda-feira certo de que aquele seria o dia do encontro com seu inimigo.
Acordou é força de expressão, porque não dormiu, passou a noite remoendo suas
estratégias de defesa. Há muito sabia que este encontro era inevitável, por isso
se preparou adquirindo inicialmente um trinta e oito, depois, um rifle e farta
munição, tudo comprado no mercado negro.
O dia havia chegado. Colocou
sua roupa camuflada de combate na selva, comprada num camelô ao lado da Central
do Brasil, uma boina do Che, coturnos, pegou as armas azeitadas nos últimos
dias, verificou a munição, trouxe tudo para a sala.
Virou o sofá e as poltronas
de frente para a porta, apoiou o rifle ali em cima, protegeu a janela cerrando
as cortinas, tirou do bolso uma caixinha de chicletes e ali ficou, mastigando
chiclete, esperando o inimigo. De surpresa não iriam lhe pegar.
Por volta das oito chegou a
faxineira. Tocou a campainha. Ele se colocou atrás do rifle e mirou para a
porta. Ela tocou outra vez. Após o quinto toque ele foi se esgueirando até a
porta com o revólver na mão
— Quem é?
— Sou eu, Lourdinha.
— Que Lourdinha?
— A faxineira, seu Josué, se
esqueceu de mim, foi?
— Eu não conheço nenhuma
Lourdinha.
— Pirou. Tá bom, se o senhor
não quer que eu entre, eu vou embora. Mas, pelo menos, me dê o dinheiro da
passagem que eu só trouxe o da vinda.
— Sem condição.
— O senhor quer que eu volte
pra casa a pé, é?
— Problema seu.
— O que está acontecendo, seu
Josué? O senhor está com algum problema, eu posso ajudar?
— Chegou o dia.
— Que dia?
— Do confronto final.
— Confronto?
— Com o meu inimigo.
— Com seu inimigo?
— Ele está chegando.
— Quem é seu inimigo, seu
Josué?
— Não sei, só sei que ele
está chegando.
— Como é que o senhor sabe
que ele tá chegando se o senhor nem sabe quem ele é?
— Eu sei.
— Como o senhor sabe?
— Primeiro foi o dono da
papelaria, três tiros no peito após entregar a bolsa com o dinheiro que trazia
do banco. Depois o dono da loteria, um tiro no peito. O entregador de pizza,
uma bala nas costas. O genro do meu chefe, uma bala na cabeça, mesmo entregando
o carro que havia acabado de comprar. A mulher do síndico do 42, três balas na
barriga. Agora, a filha do zelador da igreja, uma bala perdida. Todos morreram
porque não acreditaram que o inimigo estava chegando. Eu não, não vou me
entregar. Estou armado até os dentes. Pronto para combater até o último
cartucho. E sei que de hoje não passa.
— Oh, seu Josué, o senhor
falando assim me deixa com medo.
— Vá pra casa e se arme. Seu
inimigo também está chegando.
— Deus me guarde, eu sou
contra arma.
— Não caia nessa. O homem sem
uma arma é um escravo. Não caia nessa de entregar suas armas. Arme-se, ninguém
protege você não.
— Deus me protege.
— Deus nos abandonou há muito
tempo.
— Oh, seu Josué, acho que o
senhor não está bem. Quer que eu chame alguém? Algum amigo, algum parente, sua
ex-mulher? Acho que o senhor está precisando de ajuda, precisa falar com
alguém...
— Aqui ninguém entra. Só
entra alguém aqui por cima do meu cadáver.
— Não fale assim, seu Josué.
Acho que o senhor está nervoso demais, não quer que eu faça alguma coisa pro
senhor tomar?...
— Vá embora, não perturbe
minha concentração, não me disperse.
— Pelo amor de Deus, seu
Josué...
— Será que é você a minha
inimiga?
— Não diga uma coisa dessa...
— Vá embora!
— Eu vou chamar alguém, acho
que o senhor precisa de ajuda.
Ela saiu deixando-o atocaiado
atrás da barricada. Ele foi se esgueirando até a janela, afastou a cortina,
olhou para baixo por um lado, depois pelo outro, verificou se tudo estava em
ordem, voltou para a barricada.
Tocaram a campainha. Ele se
agitou, empunhou a arma, levantou a cabeça, apontou em direção à porta.
Tocaram mais uma vez.
Depois do quarto toque ele
saiu de trás da barricada e foi se esfregando pela parede.
— Quem é?
— Pedro, o porteiro.
— O que você quer?
— O senhor está precisando de
alguma coisa?
— É melhor você deixar o
corredor livre porque vai sobrar pipoco pra todo lado.
— O que é que está
acontecendo, seu Josué?
— Uma guerra, você não
sabe?
— Que guerra?
— Deixe de ser cretino e não
me encha, rapaz. Senão vai sobrar pra você.
— O senhor não está dizendo
coisa com coisa. Eu vou chamar seu Demerval.
O porteiro saiu à procura do
síndico. Josué tomou todas as precauções, examinou as armas, a arrumação da
barricada, achou que faltava uma sonoplastia. Foi até o aparelho de CD e
colocou Cavalgada das
Valkírias, do Wagner, que passou a ser sua trilha preferida depois que viu Apocalipse Now, do Copola. Seu
filme preferido também. Agora o cenário estava completo e ele gostou, sorriu
satisfeito e seguro para o confronto.
Demerval, o síndico, chegou
acompanhado do Pedro, o porteiro, e da Lourdinha, a faxineira. Todos
preocupados com Josué. Tocaram a campainha.
Ao contrário das outras vezes
ele prontamente atendeu.
— Quem é?
— Demerval..
— Não conheço nenhum Demerval.
— O síndico. Você não me
conhece?
— Não.
— O que está acontecendo,
Josué?
— Se você não sabe, vai
continuar na ignorância, porque não vou perder meu tempo ensinando a cavalo
velho.
— Abra a porta pra
conversarmos.
— Não temos o que conversar.
— Eu preciso falar com você.
— Mas eu não preciso falar
com você.
— Você está nos deixando
preocupados.
— Problema de vocês.
— Você precisa dar dinheiro
pra faxineira voltar pra casa.
— Porque ela não volta a pé?
— Ficou louco, seu Josué –
reclamou Lourdinha.
— Cala a boca, mulher sem
compostura.
— Assim o senhor passa do
ponto.
— Já mandei você calar a boca.
— Ele não está com o juízo
perfeito. Acho melhor chamar um parente. Vocês conhecem alguém?
— Eu não — respondeu Pedro.
— Eu perguntei quando cheguei
se ele queria que eu chamasse alguém, mas ele não me deu ouvido.
— Acho que temos um problema
pela frente.
— O problema é você, você é
que é o problema do prédio. Acho que você é que é meu inimigo. Eu achava que
meu inimigo vinha de longe e ele estava aqui, debaixo dos meus cornos. Mas não
vai ficar assim, estou preparado para o que der e vier. Vai ter pipoco pra todo
lado. Caroço de azeitona pra quem se meter a besta. Vagabundo não vai se criar
na minha horta, não.
— Desse jeito você está indo
contra os novos tempos. Você não sabe que está todo mundo entregando suas armas?
— Porque estão iludidos por
esse governo corrupto. Você viu, por acaso, algum deputado, algum senador,
entregando as armas? Algum juiz, advogado, algum bandido, entregando as armas?
Por que querem nos desarmar? Pra nos deixar mais vulneráveis? Na hora do perigo
será que a polícia vai aparecer? Uma arma na mão é melhor que um policial ao
telefone. Aqueles que tomam as decisões por nós estão confortavelmente
protegidos, circulando em carros blindados, tudo pago com nosso dinheiro. A
única coisa que temem é o uso consciente do voto. Do nosso voto. Quem não luta
pelos seus direitos, não tem direito. Criminosos adoram o desarmamento das
vítimas. A atividade deles fica mais segura.
— Desse jeito acho que você
deveria entrar pra política. Vamos conversar sobre isso?
Naquele momento Josué teve um
pressentimento, olhou para a janela na hora em que Pedro, o porteiro, afastava
a cortina e colocava a cara lá dentro. Não contou história, atirou com o 38.
O porteiro quase caiu lá
embaixo, mas conseguiu retornar pela janela do apartamento vizinho por onde
chegara até ali.
— Ele tá armado, mesmo. Ele
tá armado!
Depois daquele momento não
havia mais espaço para o diálogo. Saíram para chamar a policia. Ela não demorou.
Logo estava tocando a porta do Josué.
— Abra, é a polícia!
— Vão pra puta que os pariu!
Josué respondeu com raiva. O
policial, afeito a situações do mesmo calibre, não se abalou.
— Abra a porta, senão vamos
invadir.
— O primeiro que entrar leva
bala na testa.
— O senhor não tem chance,
entregue as armas.
— Pra vocês venderem pros
bandidos? Polícia desmoralizada.
— Joga uma bomba de efeito
moral – sugeriu outro policial.
Depois de ouvir aquilo Josué
não se conteve.
— Vão jogar bomba na puta que
os pariu.
Mandou bala na porta, três
tiros de 38.
— Recua, recua! – gritou o
sargento.
Saíram para voltar
fortalecidos. Isolaram o prédio e dois soldados foram pela janela do vizinho, a
mesma usada pelo porteiro. Jogaram uma bomba de efeito moral na sala do Josué.
Tomado pela surpresa ele se desesperou. A fumaça o sufocava, procurou a janela.
— Eu morro, mas não me
entrego. Quero ver a cara do meu inimigo!
Chegando a janela deu de cara
com o soldado, mandou bala sobre ele, não acertou. Mas levou uma bomba de
efeito moral na testa. Sufocado pela fumaça, machucado pela pancada na cabeça,
cambaleou. Viu que estava perdido, seu inimigo tinha sido mais forte, mas ele
não iria dar o gosto de ser sangrado. Meteu o revólver na boca e puxou o
gatilho.
Quando invadiram encontraram
Josué atrás da barricada, armado e morto.
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