Quando eu era criança minha cidade tinha outros limites. A leste o
fim do calçamento da Rua da Carreira. Quem correu tanto para que justificasse o
nome? Ninguém nunca explicou. A oeste o final do calçamento da Rua da Cruz, para
esta não precisava explicação porque lá estava o cruzeiro da igreja de São
Sebastião. Ao norte o Sertãozinho, balneário e local de lazer da cidade,
envolto por sua mata, e ao sul o rio Mamanguape que dá nome a cidade.
Um adulto poderia atravessar de um extremo a outro em meia hora de
caminhada, se muito. Para nós, crianças, era uma distância enorme, mas
sentíamos-nos seguros nessa “cidadela”, os perigos estavam fora desses limites.
Nas histórias que chegavam, como as do Gato, sujeito truculento, mistura de andarilho
e mendigo, que diziam corria atrás das mulheres. No carro do Papa-figo, que
carregava crianças para comer o fígado, que sempre achei vinha do Recife, não
sei por quê.
Não havia televisão e o rádio não era para crianças, mas
dispúnhamos da cidade inteira que desbravávamos em brincadeiras de mocinho e
bandido, peladas, barra bandeira, garrafão, patacho,
bola de gude e tilô (que brincávamos
com castanhas de caju), banhos de açude (que não existem mais) e nos rios, o do
Sertãozinho era o mais concorrido.
A vida parecia eterna, apesar dos medos e dos mortos que passavam
em nossa rua com destino ao cemitério. Às tragédias aconteciam com os outros,
nós nos sentíamos seguros ao lado de nossos familiares. Não havia novidades além
dos circos que apareciam de vez em quando, do cinema, e de algum aventureiro,
andarilho, que passava para nos encher de histórias e fantasias. Mas quem
precisava de novidades?
Enchíamos a vida com nossas brincadeiras e ainda tínhamos os
deveres da escola. Hoje tenho certeza de quando minha infância terminou. O dia
exato. Eu deveria ter 14 anos, foi no domingo em que um colega de peladas
morreu afogado no Mamanguape. Dia de muita tristeza. Aquilo poderia ter
acontecido com qualquer de nós. Percebi ali que os perigos podiam estar
escondidos em qualquer curva do destino. Aquele domingo foi a fronteira de tudo
que eu fazia antes e do que passei a fazer depois. Nunca mais voltei àqueles
lugares, nem a fazer as mesmas coisas, outro mundo começara para mim.
Mudei um bocado desde então e minha cidade também mudou, acabou de
fazer 163 anos de sua emancipação. Depois de décadas maltratada, a atual
administração vem lhe vestindo de roupa nova, mas preservando o que precisa ser
preservado.
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